Existe um "eu"?

   Uma análise rigorosa nos forçará a concluir que o eu não reside em nenhuma parte do corpo. Ele não está nem no coração, nem no peito, nem na cabeça. Ele também não é algum tipo de entidade difusa, como uma substância que permeia o corpo. Acreditamos que o eu está associado à consciência, mas ela também é um fluxo que nos escapa: em termos de experiência viva, o momento passado da consciência está morto (só permanece o seu impacto), o futuro ainda não está lá, e o presente não dura. Como pode existir um eu separado, suspenso como uma flor no céu, entre algo que não existe mais e algo que ainda não existe? Ele não pode ser detectado nem no corpo nem na mente; não é nem uma entidade distinta na combinação dos dois, nem algo externo a eles. Nenhuma análise séria, nenhuma experiência contemplativa ou introspectiva direta pode justificar um sentimento tão forte de possuir um eu. O eu não pode ser encontrado naquilo a que o associamos. Qualquer um pode pensar que é alto, jovem e inteligente, mas nem a altura, nem a juventude e nem a inteligência são o eu. O budismo, portanto, conclui que o eu é apenas um nome pelo qual designamos um continuum, como ao darmos a um rio o nome de Ganges ou Mississipi. Esse continuum certamente existe, mas de modo puramente convencional e fictício. É inteiramente desprovido de existência autônoma.

Matthieu Ricard em "Felicidade, a prática do bem-estar".

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